DARCY RIBEIRO – COMO EU O VI Ucho Ribeiro Darcy teve muitos couros na vida, trocou de peles diversas vezes. Dedicou-se apaixonadamente a várias atividades - foi educador, antropólogo, sociólogo, romancista, político, indigenista... e namorador. Escrever sobre Darcy não é tarefa fácil e nem sou eu a pessoa adequada para tratar de cada uma de suas paixões, obras e ardores. Seus frutos, partos e legados já estão muito bem registrados e divulgados em vasta produção bibliográfica essencial para o entendimento da cultura indígena e da formação do povo brasileiro. Farei um simples depoimento de como era a relação familiar de Darcy e como foi minha vivência com ele. Relatar que na infância havia a expectativa de reencontrar o tio doido, que tinha histórias inventivas para as cabecinhas da meninada e planos mirabolantes e audaciosos para a carranquice dos adultos de Montes Claros. Relembro de muitos fatos, desde a minha primeira visita ao apartamento dele em Copacabana, cheio de artefatos indígenas, quando tomei consciência que índio não era bugre, nem bicho, mas um humano muito criativo. Recordo também de suas visitas à terra natal e da procissão de gente norte mineira curiosa para ouvir o falatório destrambelhado e otimista do ministro da casa civil sobre o futuro - do Brasil que poderia ser, que haveria de ser. Viva ainda está nas minhas memórias a viagem ao Uruguai, para visitá-lo no exílio. Em Montevideo, meninote, assisti, caladíssimo, o seu encontro com Jango, Brizola e Waldir Pires, para tratar de assuntos assisados, incompreensíveis para minha pouca idade. Depois, quando ele voltou para o Brasil, em 1968, e foi preso na Ilha das Cobras. Revivo o medo do mano Fred e o meu de mãos dadas com a coragem de Tia Berta para visitá-lo num quase calabouço no presídio da Marinha. Temor que só se abrandava quando o víamos e ouvíamos as suas historietas ledas e espetaculosas. Poderia contar uma série de passagens de sua vida pública, como quando ele voltou em 1974 para ser operado de câncer e a sua insistência em permanecer no Brasil. Ou mesmo, após a anistia aos presos políticos, quando Brizola e ele foram candidatos vitoriosos ao governo do Rio de Janeiro e, posteriormente, sua candidatura ao senado. Seria descomplicado arrazoar pontualmente sobre cada uma das suas obras no Rio de Janeiro e no Brasil, mas para mim o mais interessante é lembrar do que ele falava imaginosamente no cotidiano. Darcy não teve cabresto, não teve rédea, talvez pela ausência da figura paterna em sua criação. Perdeu o pai, Reginaldo Ribeiro, aos 3 anos. Portanto, faltou-lhe a presença da autoridade. Nunca sofreu o mando sobre ele e, por não ter tido filho, não precisou exercer o julgo. Sentia-se uma pessoa livre, solta que tinha como característica maior não se exercer como pai, sua despreocupação em sustentar uma família, em gastar tempo com educação de filhos ou deixar patrimônio material. Cheguei a ouvi-lo dizer que sempre seria um servidor do estado e, por conseguinte, não precisaria criar nenhuma riqueza. Darcy era o inusitado, irreverente até o topo. Nunca podíamos imaginar o que ele iria falar e qual seria a sua conduta para um fato corriqueiro. Não era um comportamento habitual. Normalmente ele tinha uma visão diferente, uma ótica dessemelhante para tudo. Quando indagado sobre qualquer assunto, a resposta era sempre inesperada e, algumas vezes, incompreensível ou até mesmo dura. Cabia a nós decifrar o rebate, pois sempre cutucava, mexia, questionava, ou, no mínimo, nos provocava o pensar. O admirável sobre Darcy era sua erudição. Ele falaria uma tarde inteira sobre galinhas assim como discorreria o dia todo sobre islamismo, mecatrônica ou mesmo sobre minhocas. Por outro lado, ao encontrar alguém que dominava algum tema, fazia questão de ouvi-lo e, se interessasse, ficava horas conversando, extraindo à exaustão todo conhecimento do sujeito. Lembro-me que Darcy, certa vez, encontrou com um senhor que havia sido condutor de tropa (arrieiro, cometa), profissão que existia antigamente. Como não tinha domínio sobre as vivências e habilidades desses bruaqueiros, esmiuçou tudo, perguntou detalhes de cada aparelho e ferragem dos tropeiros. Guardava, sem anotar, todas as informações. Sua memória era fabulosa. À época em que eu fazia mestrado no Ceará, comuniquei a meus pais a intenção em transferir-me para a Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Passado alguns dias, surpreso, recebi uma carta de Darcy. Achei interessante que, logo no começo, ao me saudar, ele explicou a origem do meu apelido “Ucho”, corruptela de Marucho, filho de Mário. Elucidou a etimologia de Uxor, relativo a “mulhero”, e professorou conhecimentos do idioma grego e de latim. Em seguida, disse que iria para a Europa a estudos. Inicialmente para Inglaterra, a fim de entender por que os negros nunca se consolidaram por lá, por mais que os ingleses estivessem à frente do comércio de escravos. De Londres iria à Espanha, investigar por que os catalães e os bascos insistiam em se separar da Espanha e qual a causa de os povos da península Ibérica quererem tanto se apartar? Iria dedicar a fundo àquelas pesquisas. No meio da carta, logo depois de explicitar seus interessantes estudos e preocupações, escreveu: “bem, mas não é esse o objetivo desta carta. Estou lhe escrevendo porque seu pai me pediu que eu lhe aconselhasse a não largar o seu mestrado, lhe convencesse terminá-lo bem e voltar para Montes Claros..., para casar-se com uma montesclarense, uma mineirinha, arranjar um empreguinho num banco e morrer de medo de ser cornudo. Mas você faz o que bem entender e me liga para dizer o que está pensando da vida”. Darcy sempre nos catapultava, nos lançava para a vida. Continuamente o seu questionamento era um alerta, ou um incentivo pra gente abrir os olhos e dizer: Aah! Lembro-me que, jogando baralho, quando ele precisava de certa carta, começava a solfejar uma música indígena “Hááá Eeia rá reiá A reiá reiá rá Heinahá!”. Dizia que era para dar sorte. Outras vezes, Darcy blasfemava para conseguir a carta: “Exu... Exu... Exu... vai tomar no cu, Exu. Exu vai tomar no cu”. A irreverência dele nessas brincadeiras era imensa. Mas gostava mesmo era de ensinar, de nos desasnar. Porém, quando perguntávamos muito, durante longo tempo, ele se enfastiava e dizia: “ô... vamos parar por aqui, porque eu preciso pensar. Meu trabalho é pensar, necessito de silêncio, tenho que refletir sobre algumas coisas”. E, professava, “pensar cansa e dói e eu ganho é para isso, para pensar”. De vez em quando ele aparecia para passar com a família um final de semana, um feriado, e sempre havia uns fartos almoços. Não raro, minha mãe ou algum parente falava “ô, gente, vamos agradecer, rezar alguma coisa”. Darcy não dava muita bola para esses ritos religiosos. Ficava na dele, mas, às vezes, alguma visita inadvertidamente dizia: “ah... Darcy podia rezar pra gente”. Aí, meu pai retrucava, “não mexe com Darcy não, deixa Darcy...”. Mas insistiam: “Não... não, Darcy, reza aí”. Ele, então, rebatia assim: “ó... eu rezar o que? Eu não acredito em Deus! Não acredito por culpa Dele! Ele não é onipotente, onipresente?” E destrambelhava, olhando para o céu: “ô Deus, você podia ter me dado fé, mas não me deu, a culpa é sua. Você não é o todo poderoso? Eu podia estar aqui igual todo mundo, morro de inveja desse pessoal que acredita em Você, que tem fé, mas eu não tenho e a culpa é unicamente sua. Se quiser que eu passe a respeitá-lo, eu posso até propagá-lo, mas antes disso terá que me dar fé, mas como Você nunca me deu..., estou aqui aguardando”. Curioso é que Darcy não escrevia os seus livros, nem a mão, nem à máquina, pois não sabia datilografar, como também não sabia dirigir autos. Ele ditava suas publicações... se sentava numa posição de yoga, com as pernas cruzadas em um sofá especial do apartamento e ditava o texto para um gravador que ficava no seu colo. Passávamos longe para não incomodá-lo. Era capaz de passar três, quatro, cinco horas falando em voz alta. Depois suas secretárias colocavam aquelas fitas no aparelho de toca cassetes e, enquanto ouviam, registravam tudo que foi dito. Lembro-me de um pedalzinho que parava a fita, para pausar o áudio enquanto as anotações eram feitas. Tudo era datilografado em espaço dois e o primeiro texto escrito era entregue a Darcy para as devidas correções. Eram dias inteiros naquele trabalho: gravar, digitar, corrigir, revisar, datilografar de novo. Quando ele estava em casa, trabalhava o tempo todo. Nunca vi alguém trabalhar tanto e ser tão ocupado. Era um cara diferente, genial, criativo e afoito. Ousava ter ideias próprias, em vez de ser um aplicado comentarista das ideias alheias. Meu pai dizia, “ô, Darcy, você não foi parido por minha mãe, você foi fundado, teve fita para cortar e banda de música”. Enfim, o importante é que Darcy era um homem de fazimentos, era um homem que não se aquietava hora nenhuma. Ele sempre dizia: “eu só descanso fazendo outra coisa. Quando estou cansado de alguma coisa, eu passo a fazer outra”. Ele era uma pessoa que gostava de fazer, de construir, de realizar, tanto que idealizou, fundou e co-fundou o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, o Parque Indígena do Xingu e a Universidade de Brasília - UnB. No Estado do Rio de Janeiro, criou a Universidade Estadual do Norte Fluminense, idealizada para ser a Universidade do Terceiro Milênio; o Sambódromo, a Casa Laura Alvim, a Casa França Brasil e a Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro. Tombou 100 quilômetros de praias do litoral sul fluminense e implantou a fábrica de escolas, além de elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A maior das suas paixões foi a educação. Era indignado com a educação brasileira. Advertia que, em todo o mundo, o ensino fundamental era em tempo integral. Não existia no planeta escola de meio horário, aula só de manhã ou só à tarde. Darcy escancarava que “nenhum país decente tem menor abandonado. No Brasil, você não vê carneiro, porco ou bezerro abandonado, mas criança abandonada, sim. Isto é a coisa mais triste do mundo”! Nos governos de Brizola, Darcy dedicou-se à implementação dos 506 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que ofereciam educação em tempo integral e gratuita para crianças e adolescentes de baixa renda do Rio de Janeiro. No período da manhã os alunos tinham aulas das disciplinas regulares e, no período da tarde, recebiam reforço escolar, formação técnica profissional, esportes e educação artística. Alguns dos CIEPs atuaram como casas de amparo às crianças de rua. Os governos posteriores repudiaram o projeto de Darcy e deixaram de investir nos CIEPs. Os prédios foram transformados em escolas comuns da rede estadual de ensino e o sonho da escola pública de tempo integral foi ignorado. Resultado: a profecia de Darcy se tornou realidade: “Se nossos governantes não investirem em escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construírem presídios”. Sua maior repulsa era a “esses prefeitinhos que desviam dinheiro da educação, que têm a obrigação de gastar vinte e cinco por cento da receita municipal na educação e gastam o dinheiro com outra coisa ou roubam a merenda.” Darcy tinha verdadeira aversão a essas pessoas. O melhor de Darcy era o amor pela vida, a alegria de viver. Ele ficou muito aborrecido quando soube que findaria. Tinha mil coisas para fazer e indignava-se com aqueles que se acomodavam e deixavam a vida passar. Ele daria tudo para ter mais um ano de vida, e realizar mais alguns projetos. Darcy nos comovia, instigava-nos a viver, a acreditar que podemos melhorar o mundo, que o Brasil é a grande nação, que esse país poderia ser passado a limpo. Despertava nossas consciências ao afirmar que “o Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado.” Vaticinava que a América Latina será a nova Roma, uma Roma melhor, porque lavada em sangue índio, em sangue negro e que as grandes transformações, mesmo com tantos deslizes, irão surgir e florescer nessa nova civilização, mestiça e tropical, que está sediada na província mais bonita, mais generosa, mais fraterna do universo. Enfim, o seu maior legado foi o amor à vida, ao Brasil, a América Latina, a tudo.
* Ucho Ribeiro é sobrinho de Darcy, filho do ex-prefeito de M. Claros, Mário Ribeiro, e depois, por sua vez, vice-prefeito. É funcionário aposentado da Receita Federal.
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