HAROLDINHO, L`ENFANT TERRIBLE
Hoje morreu-me mais um. E este foi um dos bons. Do coração. Meu irmão, meu amigo, meu irreverente mentor, meu "open mind". Leu tudo, sabia de tudo, porém exorbitava ao dar a sua interpretação para a vida, pois desprovia de toda e qualquer praticidade. Delirava em ideias e projetos para o mundo, cabeça nas nuvens. Nunca aterrissou, não tinha os pés no chão.
Todo amigo é “porreta” e a grande merda de envelhecer é ver os nossos especiais morrerem. Mas Haroldo Costa Tourinho Filho, Cab´s, Cabaret, foi um desses admirados não só pela cúmplice amizade, mas pela audácia. Creio que seu atrevimento veio por ser um beatlemaníaco de primeira hora. A proposta inicial da banda inglesa era causar incômodo. Haroldo, fã incondicional, baterista, ficou insolente como os beatles, e pra nós, mais jovens, aquilo tudo era divertido e corajoso, pois não deixava de ser uma voz contra a autoridade careta.
Desafiava os mais velhos e ironizava a carranquice curraleira de Montes Claros. Alertava-nos que o mundo estava a virar de ponta a cabeça e caçoava a rapaziada da terrinha que achava a Exposição Rural o maior espetáculo da terra. Haroldo vivia sintonizado no mundo, estava ligado no desenrolar dos protestos estudantis em Paris, na guerra do Vietnam, em assistir a peça Hair, em vadiar por Piccadilly Circus, Trafalgar Square e Soho em Londres, em assistir um show de rock no Cavern Club, em saber sobre os lisérgicos tours no Central Park em New York, e, principalmente, onde conseguir o último álbum dos Beatles ou dos Rolling Stones.
O conheci em março de 1974, ele morava na rua da Bahia, em frente ao Cine Guarani em Belo Horizonte, no quarteirão do Maleta. Meses depois, com a minha ajuda para carregar sua copiosa discografia e biblioteca, mudou-se para a rua Guajajaras e passou a ser meu vizinho. Quando eu não estava na faculdade era certo me encontrar em seu apartamento sempre numa conversa plural a palpitar sobre os grandes problemas do mundo. Cinéfilo como eu, íamos ao cinema com frequência e de lá empoleirávamos em algum bar para fazer a resenha do filme. Antes da meia noite eu pegava o caminho de casa e Cabaret continuava pela madrugada adentro. No dia seguinte, eu acordava e ia para a faculdade e ele matava aula, pois dormia a manhã inteirinha, abraçado aos livros.
Era urbano, citadino, boêmio, noctívago, como tantos dos meus melhores amigos. Um espécime raro em extinção. Tinha uma sapiência vadia, sem objetividades, moléstia comum de um segmento da intelectualidade mineira, que tudo quer ler, de tudo quer saber, por pura fruição. Para esta casta letrada o saber não tem serventia para o que é funcional, prático. Haroldo era erudito em todas as nuances e sutilezas, mas com arrogâncias afloradas à medida que o grau etílico aumentava. Não era alguém que dava palpite raso, como muitos senhores do achismo. Falava com conhecimento profundo, porém quando avinhado dava aflição vê-lo manifestar sua opinião, muitas vezes desmedida. Abusava de toda a sua erudição para participar de um bate papo trivial num boteco, ficava prolixo e tornava o papo enfadonho. Sabia o suficiente sobre direito, política, arte, literatura e qualquer outro assunto que não fosse vulgar. Por diversas vezes o ouvi aniquilar certas pessoas néscias com uma frase, embora o ofendido por ignorância não entendesse o tiro certeiro e devastador. Haroldo foi uma mistura de Roniquito Chevalier e Charles Bukowski tupiniquim. “Sóbrio, era um gentleman. Bêbado, ficava destemido, adotava um temperamento belicoso. Ninguém podia ser patife perto dele. Os conhecidos não ousavam, pois seriam desmascarados”. Não raro, Cabaret levava uns esbarros de alguns chucros desvelados.
O seu conhecimento era de uso frívolo, especulativo, imaginoso, não o utilizava para a gestão da sua vida e do seu sustento. Foi um pródigo. O que tinha gastava hoje, não tinha amanhã. Viveu a vida conforme suas concepções, audacioso e petulante, sem hipocrisias. Sempre de cabeça em pé, orgulhoso. Eu invejava sua coragem.
Fui seu padrinho de casamento e ele o meu primeiro empregador, quando ocupou um elevado cargo no Ministério da Educação, em Brasília. Eu era seu funcionário amanuense durante o expediente e assíduo parceiro de gole à noite. Muito do que eu escrevi, Haroldo copidescou com maestria. Era um bamba na pena. Certamente deve ter muita coisa escrita e guardada no seu apartamento. É premente achar os seus originais e publicá-los. Sua responsabilidade, viu, Henrique!
Na quarta-feira, 23 de março, como fazia sempre, encaminhou-me copiosa postagem da Folha de São Paulo e, em seguida, pediu-me para ser internado no Hospital Aroldo Tourinho, pois estava fraco, com dificuldades para respirar. Liguei para o provedor Paulo Cesar Almeida, que foi de uma atenção desmesurada, gentilíssimo. Haroldinho, ao chegar no hospital, mandou-me sua última mensagem, em gratidão: “queixo caído com o apartamento do PC: geladeira sofá, poltrona, netflix, terraço...estou no céu.” Horas depois, seria encaminhado para o CTI e intubado. Adiou o que pode o seu internamento, só pediu ajuda no finalzinho para preparar o seu mergulho para a morte que o vinha cercando fazia tempo, com toda a naturalidade de quem sabia que chegara a hora de reciclar-se para a vida eterna.
Parodiando Mario Varga Llosa, o mundo dos rebeldes com frequência é pago com os seus desejos, mesmo sem desistir deles. A vida não é a busca de um ponto de chegada, mas a degustação de uma série infinita de caminhos, de encruzilhadas, de decisões e dilemas. Para estes sonhadores não há ponto de chegada, apenas um caminho ao longo do qual eles querem continuar. A vida se sustenta em seu próprio curso, em seu próprio movimento. O importante não é chegar. O importante são as descobertas, as experiências, as aventuras da jornada. O que os enriquecem, o que os fortalecem e o que os fazem ser verdadeiramente livres é continuar a viagem.
Boa viagem, meu querido. Vá em paz meu amigo, irmão, protetor, professor, guru, parceiro, afilhado, meu utópico sonhador. Descanse, menino, com todos os livros e alfarrábios do universo a sua volta, seus verdadeiros e grandes amigos, pois sei que você levou mais horas da sua existência lendo prazerosamente do que vivendo.
Um beijo terno do para sempre amigo Ucho.
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