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montesclaros.com - Ano 25 - sábado, 16 de novembro de 2024
 

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Mensagem: O rio levou meu riso Não é fácil estar sozinha. Já tive dez pessoas à mesa, agora tenho minhas fugas. De madrugadinha vou acordando devagar, me espreguiçando e, meio tonta de sono, rezo uma parte do ofício de Nossa Senhora, que é muito poderoso. Disso tenho certeza, porque minhas tias paternas sempre o rezavam todinho quando eu era pequena, na casa de vó Milota, e eu, escutava. Adulta, acompanhei-as na doença e assisti às suas mortes. Foram mortes bonitas, em paz, sem tubos nem outros aparatos de CTI. Uma delas, Madrinha Zu, o rezava calmamente em seu Jeito de morte, tranqüila, como se fosse dormir. Hoje, aos sessenta anos peço a Nossa Senhora que me dê uma boa velhice, uma boa caduquice e uma boa morte. Meus filhos caçoam: - Mãe, onde já se viu caduquice boa? E eu lhes respondo: - Tenho tanto medo de caduquice ruim porque um tio paterno ficou muito alterado e estranho, cismando que seus filhos o estavam roubando. Um dia ligou para a filha dizendo que ela tinha levado da casa dele os pratos de um aparelho de jantar. De um dos filhos ele levou para a fazenda a caixa de ferramentas, dizendo que lhe pertencia. De outro, tirou um ventilador e trancou no seu escritório, afirmando que o havia comprado. Sei de muitas caduquices. Uma delas é de uma amiga de Santa Luzia que ficou muito econômica depois do apagão, deixando em casa apenas uma lâmpada presa ao teto por um fio bem comprido e carregando-a por toda parte, até para o quintal, tentando economizar energia. Quando perguntamos como vai passando responde: - Oh, moça, de dia com um ovo quente e de noite com um bule de chá. Minha família tem vários octogenários e a antiga babá lá de casa observava: - Seu povo véve muito! Tenho medo de viver demais e também tenho medo de morrer. Medo de morrer eu não deveria ter, sou muito religiosa, mas como não tenho certeza da existência do céu fico com pena de ir assim, deixando tanta coisa boa. Minhas lembranças antigas são cada vez mais nítidas. As vozes da Praça do Mercado de Salinas, onde me criei, as cantigas entoadas por um vizinho, os acordes da banda, o tropel dos cavalos, o passo cansado dos burros de carga, o eco dos passos trôpegos dos homens troviscados, as instruções das professoras do Grupo Escolar e o chamado de mamãe - ´Iara, saia do curral!´ permanecem vivas. Até hoje sei todas as rezas que aprendi no internato, as partes da missa: Kyrie, Glória, Confiteor, Sanctus, Benedictus, Pater Noster, Agnus Dei, tudo entoado em latim. Todas as noites, na benção do Santíssimo Sacramento, cantávamos Tantum Ergo, a ladainha de Nossa Senhora, a Salve Rainha e, na Semana Santa, as antífonas. Fico tocada quando me lembro dos rituais litúrgicos, das procissões. Para exorcizar meus fantasmas ouço música, estudo filosofia, leio alguns romances e pouca coisa nos jornais, o jornal todo eu não leio não, porque só tem más notícias. Na TV revejo filmes bem antigos, a que assisti quando mocinha: Morangos silvestres, O rio das almas perdidas, Paisá, A hora do lobo, Amar foi minha ruína, Sete noivas para sete irmãos, O sol por testemunha, Casablanca ... a filmes novos assisto no cinema, acho ótimo não pagar. Os sexagenários tem entrada franca e com o dinheiro da entrada pago o estacionamento ou dou um trocado ao menino que ´toma conta´ do carro. Contudo gosto mesmo de ir a concertos. A música me arrebata por inteiro e nela fico imersa. Tenho tentado fazer contatos com antigos colegas, aqueles do curso primário no Grupo Escolar Dr. João Porfírio, que não vejo há décadas. Outro dia me ligou uma delas e não consegui me lembrar das suas feições. Mas ela se lembrava de mim e perguntou: - Ó Iara, você ainda tem o cabelo avermelhado e escorrido? - Ah, quem me dera! Agora tenho uns poucos fios brancos, não uso tintura. As amigas dizem que é muita sorte, pois elas estão com a cabeça branquinha. Disse meu neto: - Oh Vó, não é toda gente gorda que senta no chão, não. Só você. Sou muito rezadeira. Aqui no oitavo andar cultivo para Nossa Senhora rosas daquelas antigas, que florescem em pencas bem perfumadas e muitos as chamam de rosas de Santa Terezinha. Outras as usam para banhos de descarrego. Desde a madrugada sinto o perfume delas porque as deixo num vaso junto à imagem de Nossa Senhora, que é linda e que eu trouxe com muito cuidado, do Santuário de Fátima até aqui. Este apartamento, comprei depois de fazer uma novena para Nossa Senhora do Carmo e pedia muito a ela que me fizesse companhia depois que meus filhos se casassem. Depois da cerimônia do casamento do último filho que morava comigo, chegando em casa tive um impacto terrível ao abrir a porta. Faltava algo nas minhas entranhas e me lembrei da canção do Chico Buarque “ó metade tirada de mim!”. Ó metade amputada de mim! Entendi o que os psicólogos e analistas americanos querem dizer da síndrome do ninho vazio. Costumo caminhar todos os dias na Praça JK, lá encontro companhia. Às terças-feiras não faço caminhada, é dia de rezar o terço na Igreja de Santo Antônio pelas famílias. Aproveito para pedir a ele - milagroso e casamenteiro - que me arranje um namorado. Não precisa ser moço, nem bonito, mas que tenha boa prosa, saiba rir, e possa ir comigo ao supermercado com bom humor ... Tenho saudades dos risos e escrevo para Salinas: Oh Salinas O rio levou meu riso Machado cortou meu sonho Triste fogo das queimadas Apagou minhas certezas A desolação Traz nas cinzas Doces lembranças Ressuscita meus afetos Mais duras Que as pedras Da Praça e das tuas ruas São minhas saudades. Belo Horizonte, verão de 2000 Iara Tribuzzi

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