Este espaço é para você aprimorar a notícia, completando-a.
Clique aqui para exibir os comentários
Os dados aqui preenchidos serão exibidos. Todos os campos são obrigatórios
Mensagem: MEU VELHO CHICO Conheço o Rio São Francisco desde a minha adolescência; lembro-me quando cheguei pela primeira vez à sua margem direita, exatamente oposta à foz do Rio Pandeiros. Era no final de uma tarde morna sob um deslumbrante pôr-do-sol colorindo o céu e toda a superfície das águas. Eu, meu pai e um irmão, pretendíamos realizar nossa primeira pesca esportiva distante do já cansado pequeno Rio Verde. Seria nossa grande aventura. Ficamos parados e perplexos diante daquele majestoso cenário. O nosso barco de alumínio com motor de popa, antes supostamente grande, tornou-se minúsculo diante daquele doce mar. As lendas de “caboclos d’água” nos afloraram à pele. Sentimos medo de encarar o rio. Decidimos acampar ali mesmo. Enquanto isto, um velho ribeirinho aproximou-se da sua canoa, retirou do bornal uma garrafa de cachaça, encheu uma pequena cuia, esborrifou algumas gotas à direita, depois à esquerda e ingeriu o restante. Tomou o remo e deu início a travessia do rio. Com a proa derivada cerca de trinta graus à esquerda ele atravessou o rio em linha reta chegando exatamente ao ponto oposto à sua partida. Sem nenhum conhecimento de matemática, aquele matuto calculou a força vetorial da correnteza do rio. Logo depois, um jovem magro de pele escura, coletou com as mãos um pouco da água do rio, molhou a testa, bebeu o resto, fez o sinal da cruz, se atirou nas águas e atravessou a correnteza. Ainda sob o lusco fusco vi seu perfil caminhando na praia do outro lado da margem. Pela manhã recebemos a visita de alguns barranqueiros que se aproximavam timidamente impulsionados pela curiosidade naquele novo acampamento. Depois de uma prosa aparentemente despretensiosa coletamos informações importantes sobre o Velho Chico: suas corredeiras, seus bancos de areia, seus redemoinhos e seus mistérios. Ouvimos estórias de “Mãe D’água”, ataques de sucuris e piranhas. Descobrimos porque eles “ofereciam aos santos” dois minúsculos goles de cachaça. (A expressão “oferecer ao santo” é um hábito dos adeptos da umbanda acreditando agradar aos espíritos supostamente encostados nos cantos das casas ou no mato.) Na crença dos barranqueiros havia dúvida se o nome dado ao rio se referia à São Francisco de Assis ou de Paula. Neste caso, melhor agradar aos dois santos - curioso é que, segundo a história, nenhum dos santos ingeria bebida alcoólica. Entre verdades e mentiras a melhor opção era respeitar o Velho Chico. Contratamos um guia para nos acompanhar na nossa primeira navegação. Ficamos deslumbrados e logo descobrimos todos os seus segredos, suas manhas e suas entranhas. Tornamo-nos amigos quando entendemos o seu jeito de ser; ele nos oferecia suas águas para o banho refrescante, seus peixes que nos alimentavam e os arvoredos à sua margem para o descanso e em troca, ele exige apenas respeito. Durante décadas convivi com esse imenso rio e no decorrer de todo esse tempo assisti à sua degradação causada pelos homens, ditos civilizados, das grandes cidades. Enquanto via aquele belo cenário se transformando e como cinéfilo apaixonado pela natureza, criei um roteiro para produção do meu primeiro filme de curta metragem que recebeu o título “Apenas o Crepúsculo” inteiramente rodado na superfície das suas águas. Mesmo como simples amador providenciei todos os meios de segurança para o elenco e toda equipe de filmagem. Antes de cada cena e mesmo nos momentos de lazer eram avisados dos riscos que nos rondavam. Adverti a todos que o Velho Chico é como um ente vivo; é como uma serpente ferida pelos homens que se dizem civilizados. Acima de tudo ele é vingativo; ele devora seus inimigos, até mesmo aqueles que se acham poderosos. Felizmente todas as cenas foram realizadas sem o menor incidente, talvez porque, além do respeito ao Chico produzíamos uma denúncia da sua destruição infelizmente não compreendida ou certamente não alcançada pela mídia. Hoje, assistimos ao vivo e em cores à sua morte tal como alertamos. Às vezes retorno às suas margens, não mais para pescar, pois seus peixes foram extintos pela pesca predatória; não mais para nadar, pois suas águas foram contaminadas pelos dejetos dos grandes centros urbanos; não mais para descansar, pois seus arvoredos foram destruídos. Retorno para relembrar os bons tempos através de um diálogo que nem todos conseguem ouvir. Penso que encarno o personagem Zé Orocó, do romance “Rosinha, Minha Canoa” de José Mauro de Vasconcelos. Parece incrível, mas ouço a voz do Meu Velho Chico surgindo dos burburinhos nas pequenas corredeiras no silêncio da noite. Ele pede socorro e avisa: “Se eu morrer, muitos morrerão comigo”. Edes. 25/09/2016.
Trocar letrasDigite as letras que aparecem na imagem acima