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Mensagem: O brinquedo Eram apenas três quadras, mas se abria um caminho infinito entre eles. Quando segurava o braço do velho pai com sua mão, sentia que seu próprio corpo curvava-se mais que o dele. A placa azul, meio desgastada, anunciava: Lar dos idosos. E isso era tudo. Em outubro, seria o aniversário do pai. Durante meses serrara, aparara e lixara. Com um canivetinho pequeno fora tirando as pontas e construindo seu segredo. Devagar o pedaço de madeira fora tomando forma e identidade. Nunca fora artista, mas aquela ideia lhe viera repentinamente, depois da última visita ao velho pai. Segurara suas mãos, finas como papel, e sentira que a vida dele se ia apagando devagar. Nas poucas horas disponíveis da semana, ajeitava-se num cantinho do quarto em que morava e, de posse do canivete e de uma marretinha, ia esculpindo forma em madeira macia e cheirosa. Enquanto moldava o pequeno objeto, imagens de outros tempos entravam pela janela, sem pedir licença. Via a mãe, sempre magra, debruçada sobre o fogão, com duas panelas, de onde vinha um cheiro confortante de feijão. Ele, menino, cochilava sobre os livros, tentando enganar a fome. Vez ou outra, ela lhe passava um pito: “Estuda, minino!” E, depois, amaciava a voz: “Seu pai deve de tá chegando ...” Poucas horas após ele entrava, o rosto cansado iluminava-se ao ver o menino; puxava um tamborete e sentava-se à mesinha. Esses gestos eram a senha para que a mãe lhes servisse dois pratos de feijão com arroz: um feijão meio ralo que, às vezes, ela enriquecia com pele de porco. Só depois é que ela, suspirando, sentava-se à mesa com seu prato, sempre mais vazio que os deles. De quinze em quinze dias, o pai tinha folga no serviço. Ele e a mãe montavam na bicicleta e iam, os três, ao parque municipal. Nesses momentos, sentavam-se sobre o gramado, ela ajeitava o melhor vestido com os dedos magros e o pai, com um gesto largo, enfiava a mão no bolso. Sorrindo, estendia-lhe uma nota amassada: “Pode ir comprar seu sorvete.” Ele queria ir correndo, mas ia muito devagar; pedia sempre um sorvete de chocolate, que ia lambendo pelas beiradas, de olhos bem abertos, com medo de que, subitamente, o doce se desmanchasse ante seus olhos. A mãe achava graça, dizia que ia tomar o sorvete, ria muito – como ele tinha saudade daquele riso! Tentava deter o tempo, mas ele, até em sua memória, vinha apagando certos rostos e olhares, silenciando algumas palavras, embaçando seus olhos. Lembrava-se de que a mãe ficara mais magra, tossia muito e seus olhos queimavam. A cada vez que voltavam do médico, ela vinha menor, encolhida em seu corpo débil, o riso cada vez mais raro. Um dia, se foi. Sua mãe, tão discreta, apenas silenciara de vez, os olhos fechados, vestindo seu vestido de passeio. O pai, abatido, segurara firme sua mão e, num choro sem lágrimas, abraçou-o fortemente. Dois dias depois, comunicou-lhe que, a partir daquele dia, ele teria que morar com a tia. O pai viria visitá-lo, de quinze em quinze dias. Desde então, não faltou a nenhuma visita. Levava-o ao mesmo parque, sentavam-se num banco, perguntava-lhe da escola, da vida, dava-lhe o dinheiro do sorvete e voltavam lentamente, porque já sabiam que as coisas não duram para sempre. Os olhos do pai foram ficando cansados, seu corpo envergara-se mais, quase todo o cabelo estava branco. E ele, rapagão, comunicou-lhe que iria parar de estudar, arrumar um emprego e alugar um cantinho para eles. O tempo, esse tecelão implacável, foi deixando aqui e ali seu traçado. Ele trabalhava como garçom; o pai, aposentado, vivia inventando pequenos consertos. Casou-se, teve filhos e, de repente, a casa ficou demasiado pequena para os gestos lentos do velho. Vez ou outra, o pai perdia seu olhar no nada, esquecendo-se das coisas a seu redor. Eram apenas três quadras, mas se abria um caminho infinito entre eles. Quando segurava o braço do velho pai com sua mão, sentia que seu próprio corpo curvava-se mais que o dele. A placa azul, meio desgastada, anunciava: Lar dos idosos. E isso era tudo. Chegara o dia do aniversário dele. Naquele dia, as horas demoraram a passar. Mas sustentou a ansiedade do tempo, a gravata borboleta e os fregueses indigestos com a esperança da noite que, certamente, viria. Quando o relógio apontou a meia noite, despiu-se do uniforme, da pilha de pratos e do odor de óleo da cozinha. Apanhou a bicicleta e pedalou como menino. Eram quinze para uma hora, quando desceu da bicicleta. Naquela noite especial não precisaria obedecer ao horário das visitas. Entrou e acenou para a recepcionista. Ajeitou a blusa, os cabelos e o coração. Foi andando pelo corredor já conhecido e empurrou a porta do terceiro quarto à esquerda. O velho estava cochilando, sentado numa cadeira ao lado da cama. Abriu os olhos sem sobressalto e sorriu um sorriso sem dentes. Ele aproximou-se, afagou seus cabelos ralos e beijou-lhe a testa. Em silêncio, estendeu-lhe o embrulho que cuidadosamente preparara. Os olhinhos do velho faiscaram. Tirou de dentro do papel verde um caminhãozinho de madeira. Os olhos dos dois encontraram-se, num entendimento sem palavras. Há muitos anos, no dia do seu aniversário, o pai lhe levara um caminhãozinho como aquele. A mão trêmula do velho afagou o brinquedo, num gesto cheio de circunstâncias. O tempo, finalmente, lhes dera uma pausa. Quando o enfermeiro veio apagar as luzes, encontrou-os ainda mudos, as duas cabeças geminadas, num abraço de pai e de filho. Minha modesta homenagem aos pais de Montes Claros.
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