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Mensagem: STERCUS CANIS* Em conversas tolas sobre práticas escatológicas ou excretoterapia (designações dadas a medicina popular que utiliza substâncias ou ações repugnantes ou anti-higiênicas, como fezes, urina, cera de ouvido e saliva) eu tive conhecimento da existência de um livro antiquíssimo chamado “Erário Mineral”, que é um dos primeiros tratados de medicina brasileira com os mais extravagantes conselhos e experiências de práticas médicas, escrito pelo cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, editado em Lisboa, em 1735. O autor veio para o Brasil com a intenção de se enriquecer com a mineração. Perdido nos grotões de Minas, ao defrontar com a ignorância reinante na época e com as inúmeras doenças da população, passou a ser, empírica e obrigatoriamente, médico e cirurgião. Curioso, eu naveguei na internet e encontrei o alfarrábio no site da Scielo Livros.** Como era muito interessante, embora copioso, imprimi as partes mais bizarras e as levei para São Gonçalo do Rio Preto, onde pretendia lê-lo no final de semana ao lado do meu guru e raizeiro Irineu. Lia e sabatinava o mestre matuto sobre os absurdos e as veracidades dos conselhos seculares do cirurgião-barbeiro. No livro, o autor dizia que para acabar com alcoolismo teria que dar ao bebum um ovo de coruja mal cozido e vinho misturado com gotas de suor de cavalo. Irineu discordou e disse que a cura para cachaceiro é botar uma garrafa de cachaça no ninho de choco da galinha e depois que esta tirar os pintinhos, dar o conteúdo (fermentado durante os 21 dias) ao biriteiro. O coitado vai pôr as tripas pra fora de tanto vomitar e nunca mais vai querer tomar uma. Para os carecas havia uma receita que não falhava: raspar à navalha toda a cabeça do sujeito e bezuntá-la durante um mês com sebo de homem esquartejado. Irineu torceu a cara e disse: - Onde vamos encontrar homem esquartejado por aqui, Ucho? Seguindo a extensa leitura, o cirurgião do século XVIII dizia que a inflamação da pele em volta da unha curava-se enfiando o dedo doente no anus de uma galinha. Para a cura da malária ele recomendava que o enfermo andasse com um osso de defunto pendurado no pescoço. Irineu se calou, cabreiro e, embora atento, dedicou-se ao preparo do seu paioso. Minha leitura e os conselhos continuaram: no combate à asma, devia-se comer, diariamente, uma lesma esmagada e fervida com mel; a saliva, logo ao se levantar, antes de falar qualquer palavra, era ótima para curar feridas; as crises de asmas deveriam ser tratadas com o uso de formigas torradas com café. O epiléptico precisava beber, por uma semana, uma pinga guardada durante anos com um cordão umbilical de bebê recém-nascido. Para as hemorróidas, havia um tratamento supimpa, porém dificil de ser encarado: enfiar no anus trapos de panos encharcados em suco de limão, pimenta, cachaça e pólvora. Irineu, agoniado, protegendo o seu, inverteu a posição das pernas e disse: so faltô riscá o fósqui, cê besta! Para feridas brabas, aplicar sobre elas um sapo aberto no meio. Chá de grilo para icterícia, chá de penas de urubu para hidrofobia, chá de saco de bode para dores nos rins, chá de cocô de cachorro para tosse e sarampo... - Peraí! Interrompeu, Irineu: - Já vi falá de muitos desses tratamentos e assimpatias. Os qui eu num sei, Abel da Raiz pode dizê se já usô ou não, mas chá de bosta de cachorro, se for alvinha e ressecada, é bom mesmo pra caqueluche, sarampo e pra picada de cobra. Aí, me presenteou com um dos seus causos. Contou que, há muito tempo, aparecia nas bandas das Boleiras, antes de existir o parque do rio Preto, um marchante turco munheca, chamado Nassib, com um palavreado todo atrapalhado, que não acreditava de jeito nenhum nas simpatias e mendicâncias e fazia até chacota das crenças do povo. Arrotava que a única coisa que tinha medo era de cobra peçonhenta e por isso usava um amuleto da terra dele, azul, na forma de um olho. Segundo Irineu, a criatura tinha a mania de levantar as mãos pro céu e dizer emboladamente: “Tão me lasca!” Era só oferecer alguma coisa pra ele e o turco achava caro e dizia: “Tão me lasca!”. Eu, hoje, deduzo que na verdade ele deveria dizer “Tanrı askina!”, que em turco quer dizer “Pelo amor de Deus!” e que sonoramente parece com “Tão me lasca!” Era tão arrogante e descrente das meizinhas e crenças do Jequitinhonha que o pessoal se ajuntou para armar uma arapuca pro filho da puta. Combinaram que no dia em que alguém matasse uma cobra graúda, esta deveria ser levada para o buteco, onde Nassib, invariavelmente, depois de farto almoço, se debruçava e apagava sobre a mesa. Tram-cham. Não passou uma semana, Abel apareceu com uma jararacuçu morta imensa. Esperou só o Nassib esmorecer sobre a mesa e colou a cobra do lado dele. Nisso Chico pegou uma daquelas tábuas finas de caixotes de banana, que tem dois pequenos pregos na extremidade, e explicou: – Eu vou bater a tábua na perna do Nassib e vocês dois, com os porretes, fingirão que estão matando a cobra a pauladas. Dito e feito. Chico, pé ante pé, golpeou a tábua, com os pequenos e finos pregos, na perna de Nassib, enquanto Abel e Xisto baixaram o cacete na jararacuçu já morta, aos gritos de “Olha a Cobra, Turco!” “Cuidado!” “Afasta, Seu Nassib!” O turco deu um pulo e ficou sapateando sem saber pra onde ia ou saltava. Quando viu o tamanho da cobra, aí que sapateou bonito. Ao perceber o sangue brotando e os dois orifícios na perna, berrou: - Tão me lasca! (Tanrı askina!) O cobra me picou! Tanrı askina! O que é que eu faço, meu gente? Nisso, Chico segurou o turco com firmeza, sacolejou-o e disse: - Calma, Seu Nassib, eu vou fazer um torniquete pro veneno não espaiá pro seu corpo, mas fique aqui, quieto e deitado. Xisto, do lado, compenetrado, alertou o turco, já suando em bicas. – Relaxa, homi, enquanto o torniquete vai ataiano o veneno, Abel vai prepará o chá de bosta de cachorro. Ele é cobra criada no fazimento do chá. - Nada de cobra criada! Socorro! Me tira daqui! Tanrı askina! Num é a chá de titica de cachorro que vai me fazer viver. Onde tem uma automóvel pra me levar pra cidade? - Seu Nassib, aqui não tem carro e nem tem cavalo pra te levar a tempo pra cidade. São 10 léguas, turco! Até lá, você já foi pros quinto do inferno. Confia no homi e no chá, pois são os meios que temo e Abel já salvô uma meia dúzia de ofendido de cobras. - Prepara logo esta chá. Tanrı askina! Gritou. - Já estão acedendo o fogo, mas o chá só ficará pronto em 40 minutos. - Você está brincadeira, moço, será que vou aguentar este tempo todo? - Vai ter que aguentá, pois o chá só faz efeito se ficar 40 minutos em água fervendo. - 40 minutas? Com quarenta minutas já apodreci com o veneno. Tanrı askina! Estarei todo gangrenado. Adeus, filho de Haluk e Sarila! Será que vocês não podem adiantar a fervura? Abel, Chico e Xisto balançaram a cabeça negativamente. Nassib, então, no auge do desespero, clamou: Ô gente! Tanrı askina! Me dá logo uma pedaço desta merda seca do cachorro para eu ir roendo até que a chá fica pronta. *Stercus Canis Officinale, também chamado Album Graecum, era um medicamento popular encontrado nas farmácias antigamente, produzido a partir das fezes secas e embranquecidas de cães e de outros canídeos, inclusive do lobo Guará, e usado na forma de chá pra tratar varias enfermidades, principalmente afecções nas vias respiratórias superiores. **Scielo Livros, portal que publica e disponibiliza eletronicamente livros de caráter científico, editados, prioritariamente, por universidades. O “Erário Mineral” foi ressuscitado e republicado, no ano 2002, graças a associação da Fundação Oswaldo Cruz e com a Fundação João Pinheiro (organização Júnia Ferreira Furtado).
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